quinta-feira, 30 de abril de 2009

A 'common law' e o engessamento normativo

Opinião Jurídica:
A 'common law' e o engessamento normativo
Fabiano Deffenti
20/04/2009
Publicado no Valor Econômico

A reforma do Judiciário e, mais recentemente, a regulamentação da Lei nº 11.672, de 2008, trouxeram à tona inúmeros comentários sobre a adoção de conceitos do direito anglo-americano - "common law" - pelo legislador brasileiro. Infelizmente, a vasta maioria dos comentários se baseia em interpretações erradas sobre o funcionamento do "common law" como sistema, o que acarreta em críticas igualmente equivocadas.

É comum ouvir que o "common law" é um sistema de direito "consuetudinário". Não é. O sistema certamente originou-se a partir dos costumes dos povoados ingleses. Inicialmente, a intervenção da "written law" - "statutes" ou a leis promulgadas pelo legislador - era pontual e específica. Mas há muito tempo as normas outorgadas pelos parlamentos são abundantes, abrangendo quase todas as áreas do direito, de uma forma ou de outra, criando ou alterando as já existentes normas oferecidas criadas pelos juízes e expressas na jurisprudência.

De fato, os legisladores de hoje são rápidos e eficazes em alterar leis cuja interpretação dos tribunais difere daquela que o parlamento considera a melhor. Salvo questões de cunho constitucional - como no caso dos Estados Unidos e da Austrália, por exemplo, onde sua alteração depende de plebiscitos -, o legislativo sempre tem a prerrogativa de modificar normas através de "statutes". Descontente com certo julgado, ou preocupado com a insegurança jurídica criada por uma decisão judicial, é comum que os parlamentos prontamente promulguem "statutes" com o intuito de alterar um certo entendimento jurisprudencial. Lembre-se aqui que as constituições dos países regidos pelo "common law" tendem a tratar somente de matérias essenciais, ao contrário do livro constitucional brasileiro (quando existentes, pois nem Inglaterra nem Nova Zelândia têm um documento formal denominado como tal).

Também são comuns afirmações erradas sobre o funcionamento do sistema no que tange à força vinculante das decisões judiciais. A jurisprudência no sistema anglo-americano tem, sim, uma função chave na prestação jurisdicional. E é correto afirmar, genericamente, que no "common law" os julgados de instâncias superiores vinculam as decisões futuras das instâncias inferiores - a chamada doutrina do precedente, ou "stare decisis". Mas de forma alguma se pode afirmar que isso acarreta no engessamento do sistema.

Por quê? Primeiro, porque nada impede que as partes descontentes solicitem uma nova análise sobre a matéria abordada por um acórdão de uma instância superior. As partes estão sempre livres para pleitear uma interpretação diferente sobre qualquer norma, seja puramente provinda da jurisprudência ou de um "statute". E isso tende a ocorrer quando o "leading case" é antigo, quando os costumes sociais evoluíram, quando os fatos diferem daqueles do julgado (e daqueles julgados que os seguiram) ou quando há mudança na composição da corte, através de nomeação de outro magistrado, em casos onde a decisão não foi unânime ou quase unânime. Todavia, há uma consciência comum entre os julgadores e os demais operadores do direito da importância da manutenção do entendimento do julgador da instância superior, pois sem ela não há previsibilidade jurídica - que é vista como chave para o sucesso do ordenamento jurídico. Um juiz inglês ficaria pasmo ao saber que uma câmara do mesmo tribunal julga de maneira diversa de outra: "como se explica isso a um cliente?", perguntaria.

Segundo, porque é a "ratio decidendi" - isto é, as conclusões e fundamentos essenciais para que o juiz ou tribunal chegasse às conclusões que chegou - que vincula os julgadores de instâncias inferiores. Os julgados que alteram normas são extensos e detalhados, expondo fatos minuciosamente, comparando-os com acórdãos e sentenças prolatadas anteriormente e explanando as razões que justificam a mudança normativa. A "ratio decidendi" é, portanto, limitada aos seus fatos e futuras situações iguais ou semelhantes, mas não a petrificação de um entendimento geral sobre determinado assunto.

Assim, há um forte argumento no sentido de que o "common law" é mais flexível do que o "civil law", pois, enquanto o sistema romano-germânico estabelece regras tentando prever toda e qualquer situação que venha a acontecer no futuro através de normas prescritas pelo legislador - e, portanto, alteradas somente através do legislador, que, ao contrário do juiz, não lida com sua aplicação aos litígios no dia-a-dia -, o "common law" reconhece que é impossível prever as inúmeras variáveis e constantes mudanças na sociedade, outorgando aos magistrados poderes para alterá-las quando necessário.

Comentaristas brasileiros frequentemente confundem a busca da presivibilidade do "common law" - e sua absoluta aversão à procrastinação interminável de casos semelhantes - com rigidez normativa. Ainda, argúem que esse transplante normativo conflita com a nossa tradição jurídica. De fato, para o "common lawyer" é difícil compreender porque casos praticamente idênticos demoram anos e anos para serem resolvidos, quando um tribunal superior já proferiu seu entendimento sobre a matéria. Também de difícil compreensão para o "common lawyer" é a obrigação das partes em aceitar uma decisão que, por falta de sorte, caiu em uma turma recursal cujo entendimento é diverso da maioria dos membros do tribunal e que, se o recurso da decisão for aceito - o que cada dia se torna mais difícil -, anos se passarão para que a decisão seja revertida em nível recursal. Por fim, o "common lawyer" fica chocado com que as partes, bem como os contribuintes, acabem por ter que sustentar um aparato enorme para resolver questões jurídicas que não deveriam nem mesmo ser litigadas se simplesmente a doutrina do precedente fizesse parte do sistema brasileiro. Se o sistema é falho, não será a hora de se considerar a adoção da "stare decisis" como parte da solução?

Fabiano Deffenti é advogado habilitado em Nova York, Austrália, Nova Zelândia e no Brasil e sócio do escritório Carvalho, Machado, Timm & Deffenti Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Lisboa amanhece

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Lisboa amanhece

A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias


ESCREVO NO domingo de Páscoa, minutos depois de perder o compasso. Adormeci. Quando acordei, o compasso já tinha passado.
Não sei se os brasileiros conhecem o termo. "Compasso". A simples palavra evoca uma infância inteira sob educação católica no Portugal do pós-25 de Abril. O compasso era o momento em que um padre e quatro ou cinco ajudantes entravam nas casas da cidade, anunciando que Jesus ressuscitara.
Lembro-me: acordava cedo, vestia-me, esperava. E quando se ouvia um sino nas proximidades, a casa vestia-se com flores à porta. O compasso chegava. A família, então alargada a primos, avós e tios, recebia o grupo e beijava o corpo de Cristo na cruz. Eu, hipocondríaco desde tenra idade, sempre alimentei reservas sanitárias sobre o ato. E se aquilo transmitisse doenças? E quantas bocas já tinham beijado Jesus? E se a nossa vizinha, uma repugnante dona Mafalda (com bigode), beijara o crucifixo antes de mim?
Cheguei a partilhar estas inquietações heréticas com o meu avô, e ele, um liberal com humor intocável, dizia que a ideia era inconcebível porque o corpo de Cristo fazia milagres e exterminava qualquer doença.
A tese nunca me convenceu. Procurei, como sempre procuro, uma segunda opinião. Falei com a minha tia Estefânia, mulher devota, e disse que só beijaria Jesus se o padre usasse crucifixos descartáveis e rigorosamente esterilizados. Pobre tia. Foi a primeira vez que vi alguém desmaiar à minha frente.
Mas a Páscoa não era apenas o compasso. A Páscoa começava na Quarta-Feira de Cinzas, depois do Carnaval. Todas as sextas eram dias de jejum. Não de jejum em sentido rigoroso. Apenas em sentido lato: nenhuma carne. Só peixe. E ovos?
Iniciava-se novo debate teológico na família. A tia Estefânia dizia que os ovos estavam rigorosamente excluídos. "A galinha nasce do ovo", dizia ela, benzendo-se. "Galinha é carne, menino." O meu avô, sempre ele, entrava em cena e discordava. "É precisamente o contrário: o ovo é que nasce da galinha". O concílio durava algumas horas: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Chegava-se a um consenso: eu poderia comer a clara, mas não a gema. Ou vice-versa, não sei bem.
E eu comia. Clara, gema. E, às vezes, por esquecimento, uma fatia de presunto ao lanche. Mastigava tudo. E quando me lembrava da transgressão, fazia-se um nó no estômago e eu corria em busca de absolvição. Na pessoa do meu avô, claro. Ele ouvia tudo e, quase sem disfarçar o riso, perguntava: "Mas esse presunto tinha sabor a peixe, certo?" Eu, de tão confuso, dizia que sim. Ele declarava-me absolvido e eu regressava, de cabeça limpa, às brincadeiras do pátio.
Que terminavam na Sexta-Feira Santa. Dia sério. Na rádio, música fúnebre de manhã à noite: a marcha de Chopin, o "Réquiem" de Mozart, as sete últimas palavras de Cristo, por Haydn. A televisão acompanhava o espírito e aparecia inundada com filmes bíblicos que eu via e revia com reverência cinéfila. Um "biopic" de Franco Zefirelli, "Jesus de Nazaré", iniciava as hostilidades todos os anos. Seguiam-se "Os Dez Mandamentos" e o monumental "Ben-Hur", com sua corrida de bigas. Charlton Heston, para mim, não era ator. Era santo.
E, às três da tarde, um minuto de silêncio. Na rádio. Na televisão. Em casa. No mundo. Tudo parava. Jesus morria na Cruz, dizia-se. O tempo do verbo era tudo: "morria", não "morreu". Era presente, não passado. Era notícia, não história. Naquele momento, no Gólgota revisitado, Jesus entregava-se, uma vez mais, nas mãos do Pai para remissão de todos os pecados. E quando eu levantava nova questão teológica ("Mas Jesus está sempre a morrer e a viver como os vampiros?"), nem o meu avô me salvava de um tapa.
A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias felizes. Memórias que serão rapidamente esquecidas na sucessão dos meus dias. Mas não já, não agora. Agora, domingo de Páscoa, há apenas saudade, essa palavra sem tradução exata que os portugueses inventaram para dar nome a uma tristeza sem nome.
Levanto-me da cama, abro a janela e saio para o balcão. Lisboa amanhece. Um dia cinzento e frio, com chuva pequena, quase de choro. Ao fundo da rua, vislumbro o compasso: quatro figuras indiferentemente vestidas, que passam por portas indiferentemente fechadas. Não há crentes no bairro. Só o sino é o mesmo: uma cadência de festa que anuncia a ressurreição de Cristo a homens que dormem.