quinta-feira, 16 de abril de 2009

Lisboa amanhece

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Lisboa amanhece

A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias


ESCREVO NO domingo de Páscoa, minutos depois de perder o compasso. Adormeci. Quando acordei, o compasso já tinha passado.
Não sei se os brasileiros conhecem o termo. "Compasso". A simples palavra evoca uma infância inteira sob educação católica no Portugal do pós-25 de Abril. O compasso era o momento em que um padre e quatro ou cinco ajudantes entravam nas casas da cidade, anunciando que Jesus ressuscitara.
Lembro-me: acordava cedo, vestia-me, esperava. E quando se ouvia um sino nas proximidades, a casa vestia-se com flores à porta. O compasso chegava. A família, então alargada a primos, avós e tios, recebia o grupo e beijava o corpo de Cristo na cruz. Eu, hipocondríaco desde tenra idade, sempre alimentei reservas sanitárias sobre o ato. E se aquilo transmitisse doenças? E quantas bocas já tinham beijado Jesus? E se a nossa vizinha, uma repugnante dona Mafalda (com bigode), beijara o crucifixo antes de mim?
Cheguei a partilhar estas inquietações heréticas com o meu avô, e ele, um liberal com humor intocável, dizia que a ideia era inconcebível porque o corpo de Cristo fazia milagres e exterminava qualquer doença.
A tese nunca me convenceu. Procurei, como sempre procuro, uma segunda opinião. Falei com a minha tia Estefânia, mulher devota, e disse que só beijaria Jesus se o padre usasse crucifixos descartáveis e rigorosamente esterilizados. Pobre tia. Foi a primeira vez que vi alguém desmaiar à minha frente.
Mas a Páscoa não era apenas o compasso. A Páscoa começava na Quarta-Feira de Cinzas, depois do Carnaval. Todas as sextas eram dias de jejum. Não de jejum em sentido rigoroso. Apenas em sentido lato: nenhuma carne. Só peixe. E ovos?
Iniciava-se novo debate teológico na família. A tia Estefânia dizia que os ovos estavam rigorosamente excluídos. "A galinha nasce do ovo", dizia ela, benzendo-se. "Galinha é carne, menino." O meu avô, sempre ele, entrava em cena e discordava. "É precisamente o contrário: o ovo é que nasce da galinha". O concílio durava algumas horas: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Chegava-se a um consenso: eu poderia comer a clara, mas não a gema. Ou vice-versa, não sei bem.
E eu comia. Clara, gema. E, às vezes, por esquecimento, uma fatia de presunto ao lanche. Mastigava tudo. E quando me lembrava da transgressão, fazia-se um nó no estômago e eu corria em busca de absolvição. Na pessoa do meu avô, claro. Ele ouvia tudo e, quase sem disfarçar o riso, perguntava: "Mas esse presunto tinha sabor a peixe, certo?" Eu, de tão confuso, dizia que sim. Ele declarava-me absolvido e eu regressava, de cabeça limpa, às brincadeiras do pátio.
Que terminavam na Sexta-Feira Santa. Dia sério. Na rádio, música fúnebre de manhã à noite: a marcha de Chopin, o "Réquiem" de Mozart, as sete últimas palavras de Cristo, por Haydn. A televisão acompanhava o espírito e aparecia inundada com filmes bíblicos que eu via e revia com reverência cinéfila. Um "biopic" de Franco Zefirelli, "Jesus de Nazaré", iniciava as hostilidades todos os anos. Seguiam-se "Os Dez Mandamentos" e o monumental "Ben-Hur", com sua corrida de bigas. Charlton Heston, para mim, não era ator. Era santo.
E, às três da tarde, um minuto de silêncio. Na rádio. Na televisão. Em casa. No mundo. Tudo parava. Jesus morria na Cruz, dizia-se. O tempo do verbo era tudo: "morria", não "morreu". Era presente, não passado. Era notícia, não história. Naquele momento, no Gólgota revisitado, Jesus entregava-se, uma vez mais, nas mãos do Pai para remissão de todos os pecados. E quando eu levantava nova questão teológica ("Mas Jesus está sempre a morrer e a viver como os vampiros?"), nem o meu avô me salvava de um tapa.
A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias felizes. Memórias que serão rapidamente esquecidas na sucessão dos meus dias. Mas não já, não agora. Agora, domingo de Páscoa, há apenas saudade, essa palavra sem tradução exata que os portugueses inventaram para dar nome a uma tristeza sem nome.
Levanto-me da cama, abro a janela e saio para o balcão. Lisboa amanhece. Um dia cinzento e frio, com chuva pequena, quase de choro. Ao fundo da rua, vislumbro o compasso: quatro figuras indiferentemente vestidas, que passam por portas indiferentemente fechadas. Não há crentes no bairro. Só o sino é o mesmo: uma cadência de festa que anuncia a ressurreição de Cristo a homens que dormem.

2 comentários:

Anônimo disse...

Essa tristeza que os nossos patrícios sentem.Na verdade é a essência da condição humana.
Com seus momentos de alegria,tédio,labuta e ócio.
Joseph Conrad polonês de nascimento e que serviu na H.M.S de sua majestade.
Coloca em termos técnicos.A aterragem e a partida.
A aterragem é quando se vê alguma atividade que antecede a visão de terra.Pode ser as gaivotas costeiras,pedaços de troncos.Que despertam o marinheiro da letargia de 12meses no mar.
A aterragem é a parte maís dificil pois evoca os sentimentos mais profundos da alma.
Na aterragem toda a paisagem de mangues,estuaários,promontórios,escarpas.
A aterragem é o momento maís dificil para um navio de águas profundas.A menos que conheça o porto é uma operação delicada muitas vezes recorrendo ao prático.
A partida é quando soltam as velas do mastaréu e elas se enchem da fúria éolea.
E o casco lentamente a correr.Os navios se parecem com os homens.
O mar é instável e irritadiço debaixo de sua carranca.E levou para as profundezas hérois e anônimos.
Pois podemos imaginar as galeras romanas singrando o rio nilo.E a luta dos cartagineses.
As batalhas do almirante Nelson em Trafalgar ou o Bismarck.Não há vestígio de nada.
Os veleiros eram a pérola e dependendo do vento soltava-se mais uma vela e ele corria mais.
Ou na tempestade recolher as vergas e diminuir as velas.
Curioso na observação de Conrad que um veleiro mesmo sem velas,parecia um gigante que não admitia a derrota.
Bastava colocar um pedaço de pano(vela)e ele singrava alegre,rompendo com a proa as vagas.
Já o vapor é unicamente dependente de sua força motriz.Para abastecer as caldeiras,bastava uma quebra e o vapor se transformava em uma ilha inerte.
Coloquei estas ponderações para ilustrar a cumplicidade do Mar na vida do povo português e nossos paticios.
Os Lusíadas de Camões passando por Fernando Pessoa.Evocam a época áurea das Grandes-Navegações.
As colônias na África,América,Ásia.Apesar da brutalidade deve-se em parte a este movimento.
Hermann Mellville célebre autor de Moby-Dick de Nantuckett uma cidade que vivia da pesca da baleia.
Ele que muitos anos vivera em baleeiras antes de se dedicar ao oficio de escritor.
Em Benito-Cereno uma de suas novelas ele relata um motim em um barco-negreiro.As autoridades da época temiam que a absolvição dos condenados fosse de grave -conseqência.
Spielberg pegou esta novela e adptou para o cinema com o nome de"Amistad".Nenhum crédito para Mellville que na década de 1960 passou a ser o autor-americano mais estudado em todo o mundo.
Mas ,"Lisboa amanhece" é uma bela crônica muito humana,famíliar.Fala da estreiteza dos laços afetivos,da singeleza e simplicidade e da amizade;
Ben-Hur "Um conto de Cristo" depois adptado para o cinema por Cecil B.de Mille.
Vivido por Charlton Heston.Assim de filmes marcantes.
Cada um têm o seu favorito."A um passo da eternidade":Burt Lancaster,Deborah Ker,Montgomery Clift;Casablanca e a imortal "As time goes by",As Pontes do rio Kwei e os belos filmes de David Lean.
Talvez o grande momento seja "As luzes da ribalta" de Chaplin uma obra de cunho autobiografico que ele interpreta um artista decadente.
Para o artista no caso de Charles Chaplin este é o momento doloroso.Sempre aplaudido e ovacionado.
Vê-se no ostracismo.Sem dúvida talvez o maior gênio da história do cinema o eterno "Carlitos".
Que tantos risos e tantas lágrimas arrancou do público nos primórdios do cinema.

Anônimo disse...

Hoje mesmo lendo um Blog as observações de uma jovem estudante sobre os versos de Camões.A moça revelou que ele deveria ter um problema sexual.
O que obviamente deixou o professor estarrecido.
Mas é o desconhecimento da lingua materna da história,que leva a estes absurdos.
Assim podemos admirar a obra de Leon Toltoi "Guerra e Paz" sobre as invasões napoleônicas na Russía.
Isto é o fragmento da visão do autor e romanceada.
Boris Pasternak autor de "O Doutor Jivago" um dos maiores poetas da Rússia junto com Maiakoviski,Gogol.Relata sobre a revoluçâo bolchevique.O fato é que na literatura nada se cria tudo se copia.No fim do livro,aparecem os versos de Jivago já falecido.
"Pai aparta de mim este cálice"
"De sabor tão amargo"
É mais ou memos isso, o livro lançado na Itália.Deu a Pasternak o nobel de literatura .Cujo comitê soviético o impediu de receber. Morreu doente e esquecido em um asilo e pouco se sabe sobre a sua vida.
Chico Buarque plagiou os versos de Pasternak e fez sucesso com "Cálice" que claramente copia a síntese da obra de Boris Pasternak..Nínguem leu o livro que possui umas 500 págians.Muitos viram o filme e lembram apenas do tema de "lara".Que não é fiel em nada.Aliás para captar as idéias originais de Pasternak só lendo o original em Russo.
E há inumeros casos de artistas famosos extraindo das obras clássicas o néctar de suas obras.
E tudo bem,jamais vão desconfiar.
Assim na feira de literatura de Parati pergunte ao Sr:Chico Buarque porque nunca citou Pasternak em suas obras.De onde vêm esta centelha de seu gênio criador?
Gosto não se discute.Mas ouvir Chico Buarque sobre as suas obra literárias é perder tempo.
Mas está na mídia.É o que importa.E Jack London,Rudyard Kipling,Lima Barreto ficam esquecidos.
Pasternak perseguido pelos sovietes por pintar os vermelhos como homens manipulados,imbecis,cheios de hidrofobia,ignorantes.Eis aí um exemplo do regime diziam os sovietes.E os brancos jovens universitários,sonhadores,pueris.
O fato é que é uma obra artística á a visão de um artista,sobre um momento da Russía.
Como o próprio Napoleão era da Corsega e todos dizem é italiano!
Na Corsega havia franceses também.O fato é que Napoleâo era corso da ilha da Corséga.
Depois de seus exércitos derrotados por duas campnhas da Rússia.
Um Napolêao que chegou a tomar Moscou,mas já envelhecido e cansado e derrotado passou os ultimos anos de vida na ilha de Elba.Recordando os seus feitos.
Já não era o homem mais temido da Europa.Diga-se de passagem que apenas um fragnento de seus exércitos eram de franceses.A maioria alemães,austríacos,espanhoís,mercenários.Poucos dominavam a lingua francesa.
E o inverno e os Russos expulsaram através das estepes geladas.Aquele exército esquálido e batido.
Pois uma retirada é uma manobra muito mais complexa que o avanço.
E aqueles homens desesperados se alimentando de cavalos e cães,tinham um longo caminho de volta ao lar.
Ums descrevem os relatos de Victor Hugo em "Os míseraveis" como os maís verossímeis.Mas Toltoi que lutou na Guerra.E nos três tomos de Guerra e Paz.
Faz um relato muito mais detalhado e pormenorizado.
Do estado maior,da corte,das intrigas.É uma obra monumental.
Pois estas obras ficam nas prateleiras das bibliotecas.O descaso com a cultura.Por nossas autoridades que não exigem e desprezam.Esté é o foco da obra de Pasternk ver a barbaríe triunfar.Qualquer semelhança com o momento atual não é mera coincidência.
Aqueles da contra-revolução são piores quando tomam o poder a quem fazem oposição.
E muitas vezes ridicularizam os grandes mestres da literatura Universal.
Criando este ambiente de terror de tráfico.Da banalização da vida humana.Da falta de um sentido para a vida,ascética e espiritual.
Auto-de-fé de Elias Canetti focaliza a biblioteca como um ambiente favóravel para estes meninos ainda taciturnos e sonolentos pelo silêncio.De desenvolverem as suas qualidades e aptidões naturais.
Embora não seja este o foco do livro.