Balanço dos três anos da nova Lei de Falências
Julio Kahan Mandel e Paulo Calheiros
12/03/2008
A nova Lei de Falências e Recuperações Judiciais completa três anos de vida. Não há mais dúvida de que realmente ocorreu uma quebra de paradigma em relação à reestruturação de passivos das empresas, e aos poucos a antiga concordata, e a aversão que o modelo causava aos credores, vai sendo esquecida. Logicamente, até pela má técnica legislativa empregada, a jurisprudência vem corrigindo rotas e clareando pontos controvertidos, trazendo mais segurança jurídica ao país.
Redução nos custos de desnecessários editais (e nas próprias custas judiciais), nomeação de bons administradores judiciais, tramitação rápida dos processos, impedimento de corte de fornecimento de energia, gás ou telefone por dívidas sujeitas à recuperação judicial, moderação na fixação de honorários de administradores judiciais, flexibilização na possibilidade de migração da concordata para o novo regime, rápido deferimento do processamento da ação (sem estar preso a maiores formalismos), dispensa da apresentação de Certidões Negativas de
Débito Fiscal (CND), entre outras, são decisões que vêm contribuindo para a eficácia da lei como instrumento recuperador da saúde da empresa em dificuldade.
Contudo, em alguns casos, até por deficiência na própria lei, a jurisprudência não vem afastando alguns obstáculos para que o processo de recuperação judicial possa viabilizar a efetiva recuperação da empresa devedora. O maior exemplo é o posicionamento em relação a certas formas de crédito bancário que deveriam se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial, mas que têm sido afastados do processo em alguns casos.
São os famigerados contratos com alienação fiduciária de recebíveis, que são depositados na conta da empresa devedora mantida na instituição financeira contratada (trava bancária), ou bloqueados diretamente nas vendas através de cartões de crédito.
Mesmo com a recuperação judicial, os bancos bloqueiam os novos recursos oriundos de vendas realizadas após a impetração, e que são depositados na conta da empresa devedora, chegando-se em certos casos a bloqueios de 100% do faturamento, inviabilizando a recuperação da unidade produtiva e o pagamento aos demais credores.
Nem mesmo a proteção obtida com a suspensão de execuções por seis meses (período em que fica também vedada a retirada de bens de capital essenciais à atividade empresarial da posse da recuperanda), vem sendo aplicada. Ora, qual bem é mais essencial a uma empresa em recuperação do que os recebíveis de seus clientes, que constituem o seu capital de giro? Houve omissão do legislador neste caso, mas está claro o espírito da lei em impedir a descapitalização total da empresa.
O cenário ideal de uma recuperação judicial seria uma parceria entre credor e devedor, para que o devedor, com auxilio de seu credor, conseguisse se reestruturar, quitar a sua dívida e manter a unidade produtiva viva. Como isso é possível quando um banco credor retém todos os frutos do que a empresa produz? Como a recuperanda pode obter dinheiro novo, sem o qual nenhuma empresa em recuperação judicial sobrevive, se o financiador constatar que seu dinheiro novo será todo utilizado para quitar contratos anteriores com bancos e não para reerguer a empresa? Como alongar um financiamento mediante acordo se um lado detém tamanha força em relação ao outro?
O ideal é a parceria entre credor e devedor, para que este consiga manter viva a unidade produtiva
A legalidade de tal conduta é totalmente discutível, pois evidentemente contrária ao objetivo da lei: auxiliar e estimular a recuperação das empresas. Como bem defendeu o professor Manoel Justino Bezerra Filho em sua comentada obra sobre a matéria, em certos pontos a nova lei parece uma lei de recuperação de crédito bancário e não de empresas.
Urge uma guinada no entendimento jurisprudencial e especialmente uma alteração legislativa, para submeter o crédito bancário desta modalidade aos efeitos da recuperação judicial, ou permitir a substituição dos valores bloqueados por recebíveis futuros, ao menos durante o período de seis meses iniciais, com ou sem anuência do credor. |
Outro ponto que vem causando atritos, de maneira surpreendente posto que neste aspecto a lei é clara, é justamente uma eventual não-suspensão das ações e execuções por créditos sujeitos ao procedimento em face da empresa em recuperação judicial - artigo 6º da Lei 11.101, de 2005. Certas recuperandas vêm sendo vítimas de constrição sobre seus bens, perpetradas em especial pela Justiça trabalhista, mesmo dentro do prazo suspensivo, como bloqueio de contas bancárias e manutenção de penhoras sobre bens móveis e imóveis, muitas vezes se determinando até mesmo a venda em leilão.
O prosseguimento das execuções trabalhistas durante o período de suspensão não possui qualquer fundamento jurídico ou lógico, uma vez que é explicitamente contrário à formação do concurso de credores. O pagamento aos credores trabalhistas é parte da recuperação judicial e fará parte do plano de pagamento que será apresentado, onde inclusive goza de benesses previstas em lei. Se privilegiado um credor em uma execução individual, os demais serão preteridos. É o mesmo princípio aplicável às falências, onde também a lei vem sendo desrespeitada por certas decisões trabalhistas, conflitantes com a criação do juízo universal.
Mas os tribunais superiores vêm consolidando a competência do juízo da recuperação judicial (e da falência) em face dos trabalhistas, bem como a obrigatoriedade de se respeitar a Lei de Falências.
Em linhas gerais, o processo de recuperação vem obtendo sucesso, e aos poucos revertendo a cultura da concordata, desgastada em virtude do pouco sucesso em recuperar as empresas da antiga moratória. Os credores vêm notando que somente atuando em parceria com seu devedor, para que a recuperanda possa gerar novos faturamentos, é que será possível receber a antiga dívida, e ainda tem como bônus manter um cliente cativo, que gera novos lucros em novas operações.
Resta às instituições financeiras, privilegiadas na nova classificação de crédito e na nova lei em geral, passarem a agir como parceiras das empresas em reestruturação, abrindo novas linhas de crédito (a nova lei protege os créditos novos, que são extraconcursais em caso de quebra), ou ao menos não bloqueando seu faturamento pós-impetração da recuperação judicial, negociando com o devedor extensões nos prazos de pagamento, mesmo se encontrando em posição de força perante a atual interpretação da lei. E também uma maior obediência à lei correlata pelos juízos estranhos à recuperação judicial, a fim de se evitar decisões conflitantes e insegurança jurídica.
Julio Kahan Mandel e Paulo Calheiros são, respectivamente, sócio e
advogado do escritório Mandel Advocacia
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