quinta-feira, 30 de abril de 2009

A 'common law' e o engessamento normativo

Opinião Jurídica:
A 'common law' e o engessamento normativo
Fabiano Deffenti
20/04/2009
Publicado no Valor Econômico

A reforma do Judiciário e, mais recentemente, a regulamentação da Lei nº 11.672, de 2008, trouxeram à tona inúmeros comentários sobre a adoção de conceitos do direito anglo-americano - "common law" - pelo legislador brasileiro. Infelizmente, a vasta maioria dos comentários se baseia em interpretações erradas sobre o funcionamento do "common law" como sistema, o que acarreta em críticas igualmente equivocadas.

É comum ouvir que o "common law" é um sistema de direito "consuetudinário". Não é. O sistema certamente originou-se a partir dos costumes dos povoados ingleses. Inicialmente, a intervenção da "written law" - "statutes" ou a leis promulgadas pelo legislador - era pontual e específica. Mas há muito tempo as normas outorgadas pelos parlamentos são abundantes, abrangendo quase todas as áreas do direito, de uma forma ou de outra, criando ou alterando as já existentes normas oferecidas criadas pelos juízes e expressas na jurisprudência.

De fato, os legisladores de hoje são rápidos e eficazes em alterar leis cuja interpretação dos tribunais difere daquela que o parlamento considera a melhor. Salvo questões de cunho constitucional - como no caso dos Estados Unidos e da Austrália, por exemplo, onde sua alteração depende de plebiscitos -, o legislativo sempre tem a prerrogativa de modificar normas através de "statutes". Descontente com certo julgado, ou preocupado com a insegurança jurídica criada por uma decisão judicial, é comum que os parlamentos prontamente promulguem "statutes" com o intuito de alterar um certo entendimento jurisprudencial. Lembre-se aqui que as constituições dos países regidos pelo "common law" tendem a tratar somente de matérias essenciais, ao contrário do livro constitucional brasileiro (quando existentes, pois nem Inglaterra nem Nova Zelândia têm um documento formal denominado como tal).

Também são comuns afirmações erradas sobre o funcionamento do sistema no que tange à força vinculante das decisões judiciais. A jurisprudência no sistema anglo-americano tem, sim, uma função chave na prestação jurisdicional. E é correto afirmar, genericamente, que no "common law" os julgados de instâncias superiores vinculam as decisões futuras das instâncias inferiores - a chamada doutrina do precedente, ou "stare decisis". Mas de forma alguma se pode afirmar que isso acarreta no engessamento do sistema.

Por quê? Primeiro, porque nada impede que as partes descontentes solicitem uma nova análise sobre a matéria abordada por um acórdão de uma instância superior. As partes estão sempre livres para pleitear uma interpretação diferente sobre qualquer norma, seja puramente provinda da jurisprudência ou de um "statute". E isso tende a ocorrer quando o "leading case" é antigo, quando os costumes sociais evoluíram, quando os fatos diferem daqueles do julgado (e daqueles julgados que os seguiram) ou quando há mudança na composição da corte, através de nomeação de outro magistrado, em casos onde a decisão não foi unânime ou quase unânime. Todavia, há uma consciência comum entre os julgadores e os demais operadores do direito da importância da manutenção do entendimento do julgador da instância superior, pois sem ela não há previsibilidade jurídica - que é vista como chave para o sucesso do ordenamento jurídico. Um juiz inglês ficaria pasmo ao saber que uma câmara do mesmo tribunal julga de maneira diversa de outra: "como se explica isso a um cliente?", perguntaria.

Segundo, porque é a "ratio decidendi" - isto é, as conclusões e fundamentos essenciais para que o juiz ou tribunal chegasse às conclusões que chegou - que vincula os julgadores de instâncias inferiores. Os julgados que alteram normas são extensos e detalhados, expondo fatos minuciosamente, comparando-os com acórdãos e sentenças prolatadas anteriormente e explanando as razões que justificam a mudança normativa. A "ratio decidendi" é, portanto, limitada aos seus fatos e futuras situações iguais ou semelhantes, mas não a petrificação de um entendimento geral sobre determinado assunto.

Assim, há um forte argumento no sentido de que o "common law" é mais flexível do que o "civil law", pois, enquanto o sistema romano-germânico estabelece regras tentando prever toda e qualquer situação que venha a acontecer no futuro através de normas prescritas pelo legislador - e, portanto, alteradas somente através do legislador, que, ao contrário do juiz, não lida com sua aplicação aos litígios no dia-a-dia -, o "common law" reconhece que é impossível prever as inúmeras variáveis e constantes mudanças na sociedade, outorgando aos magistrados poderes para alterá-las quando necessário.

Comentaristas brasileiros frequentemente confundem a busca da presivibilidade do "common law" - e sua absoluta aversão à procrastinação interminável de casos semelhantes - com rigidez normativa. Ainda, argúem que esse transplante normativo conflita com a nossa tradição jurídica. De fato, para o "common lawyer" é difícil compreender porque casos praticamente idênticos demoram anos e anos para serem resolvidos, quando um tribunal superior já proferiu seu entendimento sobre a matéria. Também de difícil compreensão para o "common lawyer" é a obrigação das partes em aceitar uma decisão que, por falta de sorte, caiu em uma turma recursal cujo entendimento é diverso da maioria dos membros do tribunal e que, se o recurso da decisão for aceito - o que cada dia se torna mais difícil -, anos se passarão para que a decisão seja revertida em nível recursal. Por fim, o "common lawyer" fica chocado com que as partes, bem como os contribuintes, acabem por ter que sustentar um aparato enorme para resolver questões jurídicas que não deveriam nem mesmo ser litigadas se simplesmente a doutrina do precedente fizesse parte do sistema brasileiro. Se o sistema é falho, não será a hora de se considerar a adoção da "stare decisis" como parte da solução?

Fabiano Deffenti é advogado habilitado em Nova York, Austrália, Nova Zelândia e no Brasil e sócio do escritório Carvalho, Machado, Timm & Deffenti Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Lisboa amanhece

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Lisboa amanhece

A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias


ESCREVO NO domingo de Páscoa, minutos depois de perder o compasso. Adormeci. Quando acordei, o compasso já tinha passado.
Não sei se os brasileiros conhecem o termo. "Compasso". A simples palavra evoca uma infância inteira sob educação católica no Portugal do pós-25 de Abril. O compasso era o momento em que um padre e quatro ou cinco ajudantes entravam nas casas da cidade, anunciando que Jesus ressuscitara.
Lembro-me: acordava cedo, vestia-me, esperava. E quando se ouvia um sino nas proximidades, a casa vestia-se com flores à porta. O compasso chegava. A família, então alargada a primos, avós e tios, recebia o grupo e beijava o corpo de Cristo na cruz. Eu, hipocondríaco desde tenra idade, sempre alimentei reservas sanitárias sobre o ato. E se aquilo transmitisse doenças? E quantas bocas já tinham beijado Jesus? E se a nossa vizinha, uma repugnante dona Mafalda (com bigode), beijara o crucifixo antes de mim?
Cheguei a partilhar estas inquietações heréticas com o meu avô, e ele, um liberal com humor intocável, dizia que a ideia era inconcebível porque o corpo de Cristo fazia milagres e exterminava qualquer doença.
A tese nunca me convenceu. Procurei, como sempre procuro, uma segunda opinião. Falei com a minha tia Estefânia, mulher devota, e disse que só beijaria Jesus se o padre usasse crucifixos descartáveis e rigorosamente esterilizados. Pobre tia. Foi a primeira vez que vi alguém desmaiar à minha frente.
Mas a Páscoa não era apenas o compasso. A Páscoa começava na Quarta-Feira de Cinzas, depois do Carnaval. Todas as sextas eram dias de jejum. Não de jejum em sentido rigoroso. Apenas em sentido lato: nenhuma carne. Só peixe. E ovos?
Iniciava-se novo debate teológico na família. A tia Estefânia dizia que os ovos estavam rigorosamente excluídos. "A galinha nasce do ovo", dizia ela, benzendo-se. "Galinha é carne, menino." O meu avô, sempre ele, entrava em cena e discordava. "É precisamente o contrário: o ovo é que nasce da galinha". O concílio durava algumas horas: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Chegava-se a um consenso: eu poderia comer a clara, mas não a gema. Ou vice-versa, não sei bem.
E eu comia. Clara, gema. E, às vezes, por esquecimento, uma fatia de presunto ao lanche. Mastigava tudo. E quando me lembrava da transgressão, fazia-se um nó no estômago e eu corria em busca de absolvição. Na pessoa do meu avô, claro. Ele ouvia tudo e, quase sem disfarçar o riso, perguntava: "Mas esse presunto tinha sabor a peixe, certo?" Eu, de tão confuso, dizia que sim. Ele declarava-me absolvido e eu regressava, de cabeça limpa, às brincadeiras do pátio.
Que terminavam na Sexta-Feira Santa. Dia sério. Na rádio, música fúnebre de manhã à noite: a marcha de Chopin, o "Réquiem" de Mozart, as sete últimas palavras de Cristo, por Haydn. A televisão acompanhava o espírito e aparecia inundada com filmes bíblicos que eu via e revia com reverência cinéfila. Um "biopic" de Franco Zefirelli, "Jesus de Nazaré", iniciava as hostilidades todos os anos. Seguiam-se "Os Dez Mandamentos" e o monumental "Ben-Hur", com sua corrida de bigas. Charlton Heston, para mim, não era ator. Era santo.
E, às três da tarde, um minuto de silêncio. Na rádio. Na televisão. Em casa. No mundo. Tudo parava. Jesus morria na Cruz, dizia-se. O tempo do verbo era tudo: "morria", não "morreu". Era presente, não passado. Era notícia, não história. Naquele momento, no Gólgota revisitado, Jesus entregava-se, uma vez mais, nas mãos do Pai para remissão de todos os pecados. E quando eu levantava nova questão teológica ("Mas Jesus está sempre a morrer e a viver como os vampiros?"), nem o meu avô me salvava de um tapa.
A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias felizes. Memórias que serão rapidamente esquecidas na sucessão dos meus dias. Mas não já, não agora. Agora, domingo de Páscoa, há apenas saudade, essa palavra sem tradução exata que os portugueses inventaram para dar nome a uma tristeza sem nome.
Levanto-me da cama, abro a janela e saio para o balcão. Lisboa amanhece. Um dia cinzento e frio, com chuva pequena, quase de choro. Ao fundo da rua, vislumbro o compasso: quatro figuras indiferentemente vestidas, que passam por portas indiferentemente fechadas. Não há crentes no bairro. Só o sino é o mesmo: uma cadência de festa que anuncia a ressurreição de Cristo a homens que dormem.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Novas súmulas do STJ

Novas súmulas do STJ

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou ontem duas novas súmulas. A de número 375 determina que o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. A Súmula nº 376 define que compete à turma recursal processar e julgar mandado de segurança contra ato de juizado especial. A súmula é uma síntese das reiteradas decisões dos tribunais superiores sobre uma determinada matéria e, por meio dela, essas questões passam a ser resolvidas de maneira mais rápida. O relator da súmula sobre fraude à execução, ministro Fernando Gonçalves, considerou, por exemplo, o recurso especial ajuizado contra a Fazenda Pública de Minas Gerais pelos proprietários de um lote no município de Betim (MG), levado à penhora em razão de execução fiscal proposta pelo Estado contra os alienantes do imóvel. A Primeira Turma concluiu que o registro da penhora no cartório imobiliário é requisito para a configuração da má-fé dos novos adquirentes do bem penhorado. A segunda súmula, relatada pelo ministro Nilson Naves, baseou-se, entre outros, no mandado de segurança em que entendeu-se ser possível a impetração de mandado de segurança contra sentença de juizados cível para casos em que a ação ataca a competência do juizado para julgar caso que envolva valor acima do atribuído por lei aos juizados.

Vaga para ministro

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Eros Grau, encaminhou ontem à Procuradoria-Geral da República (PGR) os autos do recurso do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vote a lista sêxtupla encaminhada pela entidade, para o preenchimento de vaga de ministro, com base no Quinto Constitucional. A Constituição Federal garante a advogados e membros do Ministério Público um quinto das vagas de juízes em tribunais. A vaga de que trata o recurso em questão, destinada à advocacia, foi aberta em decorrência da aposentadoria do ministro Pádua Ribeiro. Na ação, a OAB pleiteia que o STJ seja obrigado a votar a lista da entidade. Em fevereiro de 2008, os ministros do STJ decidiram não escolher nenhum dos nomes submetidos à corte pela OAB.

Diárias a magistrados

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai elaborar uma resolução para regulamentar o pagamento de diárias concedidas a magistrados e servidores do Judiciário. A decisão foi tomada na sessão do pleno do conselho nesta semana, durante apreciação do pedido de providências apresentado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A AMB pede que os tribunais indiquem parâmetros objetivos e impessoais para a concessão. O relator do pedido, conselheiro Técio Lins e Silva, propôs que a comissão de prerrogativas na carreira da magistratura do CNJ elabore uma minuta para ser submetida à consulta pública e, posteriormente, para apreciação por parte do conselho.

Empresas em recuperação obtêm parcelamento especial na Justiça

Empresas em recuperação obtêm parcelamento especial na Justiça
Zínia Baeta, de São Paulo
19/03/2009

Valor On Line


É notório o fato de que, na dificuldade financeira, a primeira conta que deixa de ser paga pela empresa é a devida ao fisco. Apesar disso, débitos como esse não têm, até hoje, qualquer tipo de regulamentação ou flexibilização na recuperação judicial. Há quase quatro anos empresários aguardam o prometido parcelamento fiscal especial - a ser estabelecido por legislação específica - previsto na própria Lei de Falência e Recuperação Judicial. Ante a ausência de regras próprias para empresas em recuperação, o Poder Judiciário, ainda que pontualmente, tem criado alternativas e solucionado conflitos gerados a partir da nova lei. Em casos recentes, por exemplo, a Justiça suspendeu o curso de execuções fiscais sofridas por empresas em recuperação judicial e há um bom tempo já não exige das empresas a apresentação de certidões negativas de débito (CNDs) nos processos (leia matéria abaixo). Em uma outra situação, permitiu que uma companhia em processo falimentar - mas com as atividades ainda em curso - fosse reintegrada ao Programa Especial de Parcelamento (Paes). E em uma situação ainda mais rara, intermediou um acordo de parcelamento, com prazo mais amplo do que os 60 meses concedidos normalmente pelo fisco, entre uma empresa em recuperação do Rio Grande do Sul e a Fazenda Nacional.

"A Lei de Recuperação Judicial prevê o parcelamento. Se há um hiato na lei, não pode a empresa ser prejudicada por isso", afirma Dárcio Vieira Marques, advogado que representou a Recrusul em seu processo de recuperação judicial. A empresa, de Sapucaia do Sul, no Rio Grande do Sul, encerrou o processo de recuperação judicial, por cumprir todos os pressupostos legais necessários, em dezembro do ano passado. Mas antes de finalizar esse procedimento, o advogado conseguiu, a partir de um acordo homologado no Judiciário, parcelar em 120 meses parte do débito tributário da empresa, nos moldes do Refis. Segundo Marques, o juiz da recuperação, a pedido da empresa, chamou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o Ministério Público e o administrador judicial para uma audiência para discutirem a possibilidade. De acordo com ele, sem a oposição do Ministério Público e com a concordância da Fazenda, o acordo foi levado para ser homologado pelo juiz responsável pelas execuções fiscais contra a empresa - que agora serão suspensas. Para que ela comece a pagar o débito, segundo Marques, falta apenas a atualização do valor pela Receita Federal. O advogado tem levado ao Judiciário propostas para acordos de parcelamentos fiscais aos outros casos de recuperação judicial pelos quais é responsável. Mas, por enquanto, só obteve êxito no caso da Recrusul.

Em outra situação em que o Judiciário foi chamado a solucionar conflitos relacionados aos débitos fiscais na recuperação judicial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que, mesmo em processo de falência, a empresa teria o direito a ser reincluída no Paes. Apesar de a Bel Casas Indústria e Comércio, na época, estar na condição de falida, manteve a continuidade dos negócios como se estivesse em situação de recuperação judicial. Segundo o advogado Rúbio Eduardo Geissmann, do escritório Favero, Geissman e Heberle Advogados, que representou a empresa, a companhia foi excluída do Paes por estar nessa condição, mas recorreu ao Judiciário e a primeira turma do STJ entendeu que a tendência atual da legislação brasileira sobre o tema é a de permitir que as empresas se viabilizem, ainda que estejam em situação falimentar. Para os ministros da turma, as empresas em dificuldade devem ter garantido o direito de acesso a planos de parcelamento fiscal para que possam manter seu "ciclo produtivo", os empregos e a satisfação de interesses econômicos e consumo da comunidade. Para o advogado, ainda que a discussão seja bem específica, se o governo vier a oferecer novos parcelamentos, as empresas em recuperação ou na situação falimentar não encontrarão os mesmos óbices que sua cliente - que hoje já encerrou suas atividades. Na avaliação do advogado Luiz Rogério Sawaya, do escritório Nunes, Sawaya, Nusman & Thevenard Advogados, ainda que trate de um caso específico, a decisão do STJ é um precedente importante porque a corte levou em consideração os propósitos da nova Lei de Falências. "Mas como é o primeiro julgado, não sabemos se o STJ continuará a julgar assim", diz.

Em um outro caso, o STJ impediu o prosseguimento de penhoras sobre bens de uma empresa em recuperação judicial. O tribunal não concordou com a previsão da Lei nº 11.101 - a nova Lei de Falências -, que em seu artigo 6º, parágrafo 7º estabelece que as execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional (CTN) e da legislação ordinária específica. Para os ministros, processado o pedido de recuperação judicial, suspendem-se automaticamente os atos de alienação na execução fiscal até que o devedor possa aproveitar o benefício previsto na ressalva constante da parte final do parágrafo 7º do artigo 6º da lei - ou seja, o parcelamento especial. O advogado Luiz Antonio Caldeira Miretti, do escritório Approbato Machado Advogados, que também exerce a atividade de administrador judicial, afirma que o julgamento do STJ torna-se ainda mais importante por se tratar de uma decisão da segunda seção, que reúne as duas turmas que julgam o tema. "Com isso, acaba-se essa discussão", diz.

Ao que parece, o Judiciário vem seguindo o entendimento da necessidade de preservação da empresa. O advogado Fernando Fiorezzi de Luizi, do escritório Advocacia De Luizi, afirma que a banca, em mais de seis casos, obteve na Justiça de São Paulo decisões favoráveis em execuções fiscais, sustentando a recuperação judicial como fato impeditivo da prática de atos danosos à empresa, tais como penhoras on-line e leilões. A tese utilizada é a de que os bens penhorados são essenciais para a empresa se recuperar e, portanto, não podem ser leiloados para pagamento do fisco, sob pena de se inviabilizar a recuperação da empresa.

Apesar de reconhecer a necessidade de uma regulamentação do parcelamento especial para a recuperação judicial, o diretor do Departamento de Gestão da Dívida Ativa da União, órgão da PGFN, Paulo Ricardo de Souza Cardoso, afirma que a orientação da Fazenda é a de conceder a essas empresas apenas o que permite a lei ordinária que trata do assunto - ou seja, 60 meses para o pagamento. Segundo ele, a Fazenda não pode trabalhar fora da previsão legal existente, enquanto não há a aprovação de uma norma que conceda parcelamentos mais benéficos.

O Judiciário e as operações de derivativos

O Judiciário e as operações de derivativos
Alexandre de M. Wald e André de Luizi Correia
19/03/2009



Nos últimos meses, têm sido noticiadas várias liminares sobre operações de derivativos ou de hedge cambial. Em regra, operações atreladas ao dólar têm por objetivo fornecer proteção contra a variação cambial, mas elas têm sido usadas "também para a especulação financeira", como reconheceu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Recurso Especial nº 591.357. A apuração de quem deve pagar ou receber se dá mediante as verificações de dólar, cálculos realizados em datas fixas nas quais as partes apuram a diferença entre a cotação pré-estabelecida no contrato e a cotação oficial (PTAX), aplicando uma fórmula definida no contrato.

Várias empresas tiveram expressivos ganhos com essas operações enquanto o dólar perdia valor frente ao real. No entanto, a partir de meados de setembro, com a valorização do dólar, a situação se inverteu e tais empresas se tornaram devedoras dos bancos. A maioria liquidou ou renegociou suas dívidas. Algumas, no entanto, foram à Justiça questionar os contratos, sustentando que os bancos teriam oferecido tais operações a clientes sem o perfil adequado e não teriam explicado adequadamente os riscos envolvidos, o que autorizaria sua anulação por violação à boa-fé contratual, conforme prevê o artigo 422 do Código Civil). Argumentam também que a valorização do dólar, em razão da crise mundial, seria um evento imprevisível, gerador de desequilíbrio, o que autorizaria a revisão dos contratos com fundamento na teoria da imprevisão, prevista nos artigos 478 a 480 do Código Civil. Algumas empresas partiram para um ataque formal, alegando falta ou excesso de poderes dos executivos que celebraram os contratos.

Esses argumentos são frágeis, porque tais operações foram contratadas por altos executivos, com experiência suficiente para mensurar a adequação e os riscos desse tipo de contrato. Além disso, no ordenamento jurídico brasileiro, operações de risco se qualificam como contratos aleatórios, como prevê os artigos 458 a 461 do Código Civil, que tem no próprio risco a sua essência. A implementação do risco não justifica nem o descumprimento, nem a revisão do contrato. Como já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) durante o julgamento da Apelação nº 2007.001.69503, "um derivativo alavancado na variação futura do dólar poderia ensejar ganhos acima da média, mas em seu bojo também trazia a possibilidade de perdas expressivas, como de fato aconteceu. Não quisesse ter risco algum, deveria o recorrido ter lançado mão de investimentos conservadores, o que efetivamente não fez".

A alusão à crise mundial não altera a situação, pois a realização de pagamentos em caso de valorização do dólar foi justamente o risco assumido e previsto nessas operações. Ademais, o STJ já decidiu que "a variação cambial é acontecimento previsível no ambiente negocial com moedas estrangeiras" no julgamento do Recurso Especial nº 699.860, tendo enfatizado, em outra oportunidade - a análise do Recurso Especial nº 614048-, que "ao contratar em moeda estrangeira, o empresário sabe e espera que sua obrigação seja quantificada segundo a variação cambial. O mercado de câmbio, por natureza, é variável". O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) também decidiu que "a variação cambial do dólar não pode ser considerada fato imprevisível, conforme vem decidindo a jurisprudência" ao julgar a Apelação nº 7.301.525-2, e também entendeu que "não caracteriza a propalada imprevisibilidade, apta a permitir a revisão almejada pela recorrente, porque inerente ao contrato o reajuste pela própria variação cambial, qualquer que fosse ela e sem balização de limites" ao analisar a Apelação nº 591.035-0.

Nos Estados Unidos, contratos de derivativos celebrados conforme regras da International Swaps and Derivatives Association (ISDA), que inspiraram os contratos brasileiros, têm sido questionados há muito tempo. A Justiça americana, no entanto, já firmou jurisprudência acerca da validade desses contratos, como demonstram as decisões nos casos Indosuez versus National Reserve Bank, Korea Life versus Morgan Guar. Trust., St. Matthew's Baptist Church versus Wachovia Bank, K3C Sierra Industries versus Bank of America e Power & Tel. Supply. versus Suntrust Banks. Merece destaque recente decisão no caso Hexion versus Huntsman, que rechaçou a alegação de que a crise mundial constituiria um material "adverse effect" - o equivalente americano ao fato imprevisível que autoriza a aplicação da teoria da imprevisão no Brasil - e, assim, determinou o cumprimento do contrato.

No Brasil, a partir da crise, foram propostas cerca de 12 ações para discutir derivativos, todas com pedidos de liminar. A Justiça gaúcha concedeu liminares em duas ações, mas exigiu caução equivalente aos valores discutidos. A Justiça paulista indeferiu uma liminar em uma ação e concedeu liminares em outras cinco, mas determinou o depósito judicial das parcelas. A Justiça catarinense indeferiu liminares em três ações, enfatizando que quem realizou esse tipo de operação "optou por uma linha de ação empresarial-financeira, mas pelo visto cometeu erros de diagnóstico. Como inúmeros outros ao redor do globo, nesse momento de forte depressão no cenário econômico internacional, pode-se ter perdido dinheiro, mas isso não significa a possibilidade de apresentar uma 'quase proposta de moratória' para resolver o seu lado, naquela visão de 'socializar o prejuízo'". Questionou, ainda, "se acaso, em cenário supostamente inverso", a empresa viesse "a ter ganhos extraordinários com as operações, viria a juízo oferecer o excedente ao banco?"

Como se vê, o panorama não é favorável às empresas. Quatro liminares foram indeferidas e as sete liminares deferidas foram condicionadas ao depósito judicial dos valores discutidos. Além disso, existe uma expressiva jurisprudência contrária à revisão de contratos com risco cambial. Em suma, enquanto o real se encontrava valorizado e eram credoras dos bancos, as empresas cumpriram os mesmos contratos que ora questionam em virtude de terem se tornado devedoras, o que reduz as chances de êxito das ações em curso.

Alexandre de M. Wald e André de Luizi Correia são advogados e sócios do escritório Wald e Associados Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

quarta-feira, 18 de março de 2009

Mendes defende mudanças para a promoção de juízes

São Paulo, terça-feira, 17 de março de 2009

Folha de Sao Paulo

Mendes defende mudanças para a promoção de juízes

Presidente do STF diz que há casos de magistrados sem vocação em varas especializadas

Ministro, que citou como exemplo varas de execução criminal e da infância e juventude, afirma que CNJ irá regulamentar o tema

THIAGO FARIA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA ONLINE

O ministro Gilmar Mendes, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), defendeu ontem a mudança nos critérios para a remoção e promoção de juízes no país. De acordo com ele, o assunto está sendo discutido no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que deve regulamentar o tema por meio de uma resolução.
Mendes, que também é presidente do CNJ, afirma ter detectado casos de juízes promovidos para varas específicas -como de execução criminal e da infância e juventude- que não têm vocação adequada para exercer a função.
"Estamos sugerindo que os próprios conselhos de Justiça, órgãos superiores da Justiça de cada Estado, façam a devida avaliação tendo em vista esse perfil", afirmou o ministro durante reunião com membros do conselho da Fundação Abrinq, em São Paulo.
Durante a reunião, membros da fundação afirmaram ter preocupação com decisões de juízes que acabam condenando jovens ao sistema prisional por pequenos delitos.
Embora as mudanças nos critérios de promoção ainda estejam em discussão, o ministro do STF sinalizou que as alterações visam aperfeiçoar as atuais regras por antiguidade ou merecimento.
De acordo com Gilmar Mendes, em alguns casos é preciso que o magistrado atue como uma espécie de "gestor" para que possa exercer sua função de forma satisfatória.
"Nós precisamos de pessoas que conheçam o tema e que se interessem, que fiscalizem os eventuais abusos, que tenham um papel de gestor, que recusem os abusos de direitos humanos que se perpetuam, que eventualmente tenham até a coragem de dizer, por exemplo, que não mais vai haver determinado tipo de condição que pode-se levar ao encerramento de uma unidade prisional", afirmou o ministro.
"Não é razoável que um juiz da execução criminal nunca tenha visitado um presídio", disse o presidente do Supremo.

Governo propõe tabela de indenização por partes do corpo em seguro obrigatório

São Paulo, terça-feira, 17 de março de 2009
Folha de Sao Paulo

Governo propõe tabela de indenização por partes do corpo em seguro obrigatório

FERNANDA ODILLA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O governo federal incluiu no texto de uma medida provisória uma tabela que oficializa o preço dos membros do corpo humano para pagamento de indenização de vítimas de acidente de trânsito com dinheiro do DPVAT, o seguro obrigatório para donos de veículos.
Para alterar as regras, o governo aproveitou a edição da medida provisória que criou duas alíquotas na tabela do Imposto de Renda, em dezembro.
A MP já entrou em vigor, e vítimas de acidente que ficarem totalmente surdas, por exemplo, receberão R$ 6.750 -50% do valor máximo (R$ 13.500 em caso de morte ou invalidez total). A MP já tranca a pauta da Câmara, mas é a terceira na fila votações obrigatórias.
A tabela, com pequenas diferenças, era usada internamente pelas seguradoras. Mas as indenizações questionadas judicialmente eram quase sempre corrigidas para valores superiores.
"As seguradoras perdiam em todas as instâncias porque a Justiça nunca aceitou essa tabela. A solução que encontraram foi enfiar as mudanças numa medida provisória que trata de um tema totalmente diferente do DPVAT", diz o advogado André Cortês, presidente da comissão de advogados que atuam na área de DPVAT.
O superintendente da Susep (Superintendência de Seguros Privados), Armando Vergilio, diz que a alteração ocorreu por MP porque era preciso uma "solução urgente" e não havia tempo para um projeto de lei. "Ou aumentávamos em 23,9% o valor do DPVAT já neste ano e em 40% em 2010 ou fazíamos as mudanças. Já estamos usando nossas reservas para pagar todas as indenizações."
A Susep informa que um dos principais objetivos da inclusão da tabela na legislação é conter a avalanche de indenizações judiciais, que aumentou 2.000% entre 2005 e 2008.
"Há uma indústria de advogados que se especializou em discutir o valor das indenizações na Justiça", diz Ricardo Xavier, presidente da Seguradora Líder, que administra os recursos do DPVAT.
Os valores vão de 10% a 100% do máximo de indenização calculado pela Sociedade Brasileira de Medicina de Seguro.

Prisão civil

Prisão civil

A possibilidade de prisão do depositário judicial infiel foi negada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Terceira Turma adequou seu posicionamento à recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e concedeu habeas corpus a um depositário do Distrito Federal. A relatora do caso foi a ministra Nancy Andrighi. Ela lembrou que, no dia 3 de dezembro do ano passado, o Supremo adotou o entendimento de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aos quais o Brasil aderiu têm status de norma supralegal. Assim, por ter havido adesão ao Pacto de São José da Costa Rica, que permite a prisão civil por dívida apenas na hipótese de descumprimento inescusável de prestação alimentícia, não é cabível a prisão civil do depositário, qualquer que seja a natureza do depósito. A decisão no STJ foi unânime.

Escritórios do Reino Unido já demitiram 2.700 advogados

Escritórios do Reino Unido já demitiram 2.700 advogados
Andrew Taylor, Financial Times, de Londres
17/03/2009




A extensão com que a recessão econômica espalhou seus tentáculos a quase todas as áreas do mercado de trabalho foi graficamente ilustrada por planos do governo de gastar 40 milhões de libras esterlinas para ajudar profissionais e executivos dispensados a encontrar trabalho. O plano anunciado na semana passada por James Purnell, secretário da Previdência e do Trabalho do Reino Unido, ajudará até 350 mil pessoas sem experiência recente com procura de trabalho, oferecendo-lhes uma ajuda especial nas centrais de emprego. Entre eles poderão ser vistos alguns poucos advogados e funcionários de áreas jurídicas da City londrina - o centro financeiro de Londres - que passaram a sofrer na recessão. Cerca de 2.727 advogados e funcionários de departamentos jurídicos perderam os seus postos de trabalho ou estão mantendo consultas de desligamento nas 200 maiores bancas do Reino Unido, de acordo com uma avaliação abrangente que está sendo realizada pela revista setorial "The Lawyer".

Os números podem ser baixos na comparação com as reduções de pessoal ocorridas em bancos de investimento, mas, mesmo assim, são desoladores, especialmente para o chamado "magic circle" (círculo mágico) das firmas de advocacia de elite, acostumadas com lucros recordes e altos salários. Os que correm maior risco são advogados associados iniciantes e do corpo jurídico administrativo, contratados durante os tempos de expansão para ajudar a lidar com uma crescente carga de trabalho alimentada por uma expansão nos bancos de investimento, que desde então comprovou ter sido construída sobre areia. Mas os sócios também podem ser vulneráveis aos efeitos mais amplos da recessão.

A edição do início de março da "The Lawyer" informa que o escritório Allen & Overy, um dos integrantes do "magic circle", "deverá reduzir drasticamente sua principal equipe de finanças alavancada, após uma escassez no setor de aquisições ter levado os mercados alavancados a seu mais baixo nível histórico". Entre as vítimas potenciais, de acordo com a revista, estavam cinco sócios. Até recentemente, as finanças alavancadas representaram uma força motriz na área bancária do Allen & Overy, diz a revista. A banca anunciou recentemente seus planos para congelar as taxas cobradas dos clientes e de reduzir em quase 10% o número de seu pessoal de suporte ao redor do mundo, os advogados assalariados e o número de sócios que detêm e administram o negócio. A Allen & Overy informou que estava promovendo os cortes "com pesar", acrescentando que a perda de 450 postos de trabalho aconteceria em Londres. Wim Dejonghe, sócio gerente global, disse: "No ambiente de mudança veloz em que atuamos, a realidade é que simplesmente não há trabalho suficiente para manter nosso pessoal suficientemente ocupado e não vemos esse quadro se alterando no curto a médio prazo". As propostas ocorrem na esteira de programas de restruturação semelhantes, anunciados pelas bancas Clifford Chance, Linklaters e Freshfields Bruckhaus Deringer, também membros do "magic circle".

O crescimento na atuação jurídica proveniente dos mercados financeiros e de dívida sempre esteve sujeito a cortes de pessoal quando estes se movessem na direção contrária. A gravidade da retração, porém, indica que a demanda deverá se manter bem abaixo dos níveis anteriores, mesmo quando os mercados se recuperarem. O que impressiona mais dos que as dispensas, dizem advogados sêniores, é o crescente consenso de que a prática jurídica - que nos 100 anos passados foi um dos modelos financeiros mais estáveis da City - não voltaria jamais a ser o que foi. "Podemos estar enfrentando uma verdadeira mudança de paradigma", diz Ted Burke, executivo-chefe da Freshfields Bruckhaus Deringer ao "Financial Times" no mês passado.

Depois de terem contratado uma legião crescente de advogados iniciantes durante os anos de expansão - muitas vezes a salários extremamente inflados - reina uma preocupação real de que as multinacionais, bancos de investimento e outros clientes tradicionais do Reino Unido simplesmente não necessitarão da mesma gama de serviços jurídicos quando a economia se recuperar. É improvável que as recentes reduções de pessoal, anunciadas pelas firmas do "magic circle" e outros advogados destacados, sejam de curto prazo. Em vez disso, elas podem representar um pensamento estratégico de longo prazo. A estratégia de "novo mundo" do Linklaters, elaborada para assegurar que a firma tenha o formato adequado de longo prazo para fazer frente às demandas mutantes do mercado, é um caso em questão. Simon Davies, sócio-diretor do Linklaters, diz: "Concluímos que levará muito tempo para o mercado se recuperar". Até agora, os sócios graduados se apressaram em enxugar as áreas mais duramente atingidas pelo aperto do crédito, como imóveis e financiamento estruturado. Eles reconhecem, porém, que os cortes pretendidos e o remanejamento de funcionários para áreas mais movimentadas só conseguirão alcançar um resultado limitado, mesmo para as firmas melhor administradas. (Tradução de Robert Bánvölgyi)

A MP 449 e o IOF sobre operações de leasing

A MP 449 e o IOF sobre operações de leasing
Eloy Câmara Ventura
25/02/2009 Valor On Line




Atirou no que viu e acertou no que não viu. A máxima popular serve bem para ilustrar o equívoco cometido pela equipe econômica ao conceituar o teor da Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008, amplamente divulgada pela mídia. Ora, todos os estudiosos que já se debruçaram sobre o instituto do arrendamento mercantil - ou leasing - sabem das dificuldades em conceituar o mesmo. Isso porque, em nosso país, o leasing adotou regras próprias e há muito se afasta das correntes doutrinárias alienígenas que lhe deram origem. Hoje a maioria dos estudiosos converge no sentido de que o instituto do leasing é uma mera atividade de prestação de serviços.

No Brasil, durante muito tempo prevaleceu a proibição de celebração de contratos de leasing com pessoas físicas. Assim, o instituto só podia ser utilizado pelas pessoas jurídicas. Havia, porém, algumas exceções, graças à peculiaridade de nossa legislação tributária, que equiparava as pessoas físicas às jurídicas em relação ao exercício de determinadas atividades - tais como microempresas ou alguns profissionais liberais que exerciam profissões regulamentadas -, desde que ficasse comprovado o atendimento a alguns requisitos legais e fiscais (como a existência de livro caixa, etc.) e houvesse o reconhecimento do órgão fiscalizador, externado através de um código de identificação publicado periodicamente do Diário Oficial. Dessa forma, a pessoa física era, em tudo, equiparada à jurídica, inclusive com a permissão para adquirir bens por meio da modalidade de leasing.

Já a sociedade de arrendamento mercantil, também conhecida como empresa de leasing, é uma pessoa jurídica constituída geralmente sob a forma de sociedade anônima, tendo como objeto principal a prática das operações de arrendamento mercantil de bens móveis ou imóveis de produção nacional, adquiridos de terceiros, para uso da arrendatária em sua atividade econômica. No Brasil, dentre as operações declaradas como financeiras está o contrato de arrendamento mercantil ou de leasing, que, a rigor, não caberia no conceito de atividade bancária.

A Lei nº 6.099, de 12 de setembro de 1974, e suas alterações, feitas pela Lei nº 7.132, de 26 de outubro de 1983, subordinou tais operações ao controle e fiscalização do Banco Central do Brasil (BC), na conformidade das disposições do Conselho Monetário Nacional (CMN). A partir de 1996, o conselho, através do BC, legislou sobre o tema no sentido de estender a prática das operações de leasing às pessoas físicas indistintamente, inclusive por celebrações com parâmetro em dólar, desde que a modalidade estivesse lastreada em repasses de moeda estrangeira, conforme estabeleceu a Resolução nº 2.309.

Partindo do conceito de que o leasing é uma prestação de serviços, houve uma convergência de entendimento no sentido de que a modalidade estaria sujeita à tributação do Imposto Sobre Serviços (ISS) no local onde fosse exercida a atividade administrativa, geralmente onde fica sua sede social. Mais recentemente, surgiram em algumas localidades - no anseio de aumentar suas arrecadações - a interpretação de que deveria haver a incidência de nova tributação no local da circulação do bem. Entretanto, os diversos tribunais do país, em reiteradas decisões, tem se manifestado no sentido de afastar tal pretensão, fazendo prevalecer o principio do ISS como carga tributária única no local de origem e afastando de vez outras pretensões.

A volúpia de ações propostas por alguns municípios do sul do país em aplicarem uma bi-tributação de ISS sobre o leasing, fundamentadas na alegação da circulação do bem naquelas comarcas, já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que começa a julgar a incidência do tributo sobre essas operações. É preciso que Supremo haja com sabedoria, definindo que a prática do leasing é uma prestação de serviços e que jamais poderá ser objeto de nova tributação, uma vez que já supriu ao recolhimento do tributo no local de origem, ou seja, na sede da arrendadora.

Agora, com a divulgação do teor da Medida Provisória nº 449, investe a autoridade econômica, em um "furor tributandis", sobre a tributação do leasing, estabelecendo que ela seria passível de tributação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Somos da opinião de que não existe nenhum embasamento jurídico para descaracterizar totalmente a figura do instituto do leasing, tradicionalmente praticado em nosso país desde 1974, e transformá-la em uma operação financeira. Há apenas a argumentação meramente econômica, sem qualquer respaldo jurídico.

Tão logo foi divulgado o teor da Medida Provisória nº 449, houve a imediata reação de diversos segmentos da sociedade em sentido contrário, seguida da manifestação governamental, por meio do Ministério da Fazenda, de que mesmo estando prevista a possibilidade de aumento da carga tributária com a cobrança do IOF sobre as operações de leasing, não haverá - ao menos por enquanto - a aludida arrecadação. Tomara que prevaleça o bom senso das autoridades e de todos os setores da sociedade diretamente envolvidos para que não se pratique nenhum excesso e que seja suprimida do texto da Medida Provisória nº 449, antes de sua transformação em lei, essa possibilidade, inserida através da redação dos artigos 40,41 e 42 da norma, encerrando-se definitivamente a questão - que já nasce morta -por falta de fundamento legal.

Eloy Câmara Ventura é advogado, mestre em direito bancário, diretor da consultoria Ventura & Tota, conselheiro da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (Anef), diretor e presidente do conselho de ética da Associação Nacional das Empresas Prestadoras de Serviços (Aneps) e autor do livro "A Evolução do Crédito da Antiguidade aos Dias Atuais" pela editora Juruá

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