quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A impenhorabilidade de salários no Brasil

A impenhorabilidade de salários no Brasil
Bruno Dantas e Marcos Köhler
27/09/2007

Valor On Line

Os salários no Brasil, salvo raras exceções, são absolutamente impenhoráveis. Esta restrição à pretensão executiva atende a dois objetivos com status constitucional: a proteção à dignidade humana e a promoção da solidariedade social. Apesar da boa intenção presente nestes princípios, a forma distorcida com que se materializaram no sistema jurídico brasileiro acabou por frustrar tanto os objetivos de proteção da dignidade e da promoção da solidariedade quanto à promessa constitucional de acesso à Justiça.

A grande desigualdade de salários no país e a inexistência de um limite legal para a proteção dos imóveis considerados bens de família, associadas à impenhorabilidade absoluta dos salários, geram efeitos altamente negativos no mercado de crédito, tanto do ponto de vista da justiça social quanto da eficiência.

Em primeiro lugar, os juros são maiores sobre vendas a prazo de bens que não se prestam a servir como garantias reais - como móveis, eletrodomésticos e outras utilidades domésticas, que têm peso maior no orçamento de famílias de menor renda. O inverso deste argumento pode ser visto no fato de que, no mercado de automóveis, por exemplo, em que o bem financiado funciona como garantia real, a taxa de juros é bem menor do que a média do mercado.


Em segundo lugar, para as famílias de menor renda, a dificuldade de acesso ao Poder Judiciário e a essencialidade do crédito - fazendo com que seja imprescindível a manutenção de um cadastro positivo nos SPC - tornam a cláusula de impenhorabilidade do salário, na prática, quase um formalismo vazio. Já para as famílias de renda mais alta, comprometidas com dívidas de valor elevado, o recurso ao Judiciário é certamente um caminho seguro para fazer valer, na prática, o direito à impenhorabilidade absoluta.


O fim da impenhorabilidade dos salários, tal como é hoje abrigada na legislação, não teria apenas o efeito de reduzir os juros - o que por si só já seria muito benéfico. Ainda mais importante é que esta previsível redução dos juros incidiria mais nas faixas de mercado voltadas para as famílias de menor renda.



A impenhorabilidade absoluta de salários vigente hoje acirra a desigualdade social, em vez de reduzi-la


A proposta de flexibilizar a impenhorabilidade dos salários, contudo, não pode se confundir de maneira alguma com a defesa da expropriação absoluta e ilimitada dos salários do devedor, independentemente de sua situação econômica e da relação existente entre seu salário e o montante da dívida. O que sustentamos é a necessidade de aperfeiçoamento do sistema, para que tanto a proteção à dignidade humana quanto o acesso à Justiça sejam efetivos.


Entretanto, não é possível desconhecer, especialmente à luz da comparação internacional, que a impenhorabilidade absoluta dos salários, hoje vigente no Brasil, está longe de proteger o devedor pobre. Na verdade ela se tornou uma trincheira segura para devedores de alta renda e elevadas posses que, de propósito ou por leviandade, se sentem livres para lesar seus credores, certos de que não encontrarão na legislação qualquer limite à sua prática anti-social.


A comparação internacional é esclarecedora. Na Bélgica, país em que tradicionalmente prevalece o estado de bem-estar social, o limite de impenhorabilidade do salário é de ? 828,00. A partir deste valor, parcelas crescentes do salário passam a ser penhoráveis, até se atingirem ? 1.071,00, cifra a partir da qual todo o ganho excedente é totalmente penhorável. Na Alemanha, o valor absolutamente impenhorável é de ? 930,00. A partir deste patamar, todo acréscimo de salário é penhorável. Em paridade de poder de compra, para o ano de 2005, os valores acima correspondiam a R$ 1.125,00 para a Bélgica e a R$ 977,00 para a Alemanha, tomando por base a moeda brasileira. Como se vê, os valores absolutamente impenhoráveis nestes países são bastante modestos.


Há uma segunda circunstância que torna ainda mais evidente a injustiça da regra da impenhorabilidade absoluta dos salários vigente no direito positivo brasileiro: a distribuição de renda no Brasil é muito pior do que a dos dois países apontados. O coeficiente de Gini, que é tanto maior quanto mais expressivo for o nível de concentração de renda, foi, no ano de 2005, 0,55 no Brasil. Já na Bélgica, foi de 0,25 e na Alemanha, de 0,28. Isto quer dizer que, para uma sociedade mais desigual como a brasileira, concede-se garantia absoluta para os salários maiores, ao contrário do que é feito nas sociedades mais igualitárias. E, vale lembrar, mais ricas.


Como se vê, o vigente modelo de impenhorabilidade absoluta de salários é anacrônico e acirra a desigualdade social, em vez de reduzi-la. Embora nem sempre transpareça de forma cristalina aos estudiosos do direito, a célebre frase do prêmio Nobel de economia Milton Friedman cai aqui como uma luva: "There is no such a thing as a free lunch" ("Não existe almoço de graça"). Quando o Estado retira do alcance do credor determinados bens do devedor, em homenagem à solidariedade social e à dignidade da pessoa humana, é evidente que alguém na sociedade - quando não toda ela - arca com esta decisão política. No Brasil, infelizmente, parece que o almoço de alguns poucos endinheirados vem sendo pago por muitos pobres.


Bruno Dantas e Marcos Köhler são, respectivamente, advogado, professor da Escola da Magistratura do Distrito Federal e consultor-geral do Senado Federal; e economista e consultor em sistema financeiro e dívida pública do Senado Federal


Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

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