Há 12 anos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro José Delgado é um dos mais antigos da corte e também um dos principais críticos do vaivém da jurisprudência da casa - faz questão de lembrar que sai vencido nos julgamentos em que o STJ muda de posição. O ministro reconhece que o problema é especialmente agudo na seção de direito tributário, da qual faz parte, e critica a falta de sensibilidade do tribunal ao princípio da segurança jurídica. No caso do crédito-prêmio IPI, Delgado votou contra a "modulação" dos efeitos da nova jurisprudência, que serviria para preservar as empresas - mas já admite mudar de posição no futuro. E não demonstra espanto com a possibilidade de as empresas pedirem indenização ao Estado pelos prejuízos causados com a mudança de jurisprudência. Delgado defende ainda a criação da competência constitucional do STJ, alegando que a limitação à competência infraconstitucional apenas duplica o trabalho do Supremo Tribunal Federal (STF) mais tarde. "Um carnaval de burocracia", define. O ministro concedeu a seguinte entrevista ao Valor:
Valor: O STJ tem passado por freqüentes situações de mudança de jurisprudência, em especial na área tributária. Por que isto acontece? José Delgado : Antes da Constituição de 1988, o Supremo era quem decidia matérias de litígios tributários - constitucionais e infraconstitucionais. Se nós fizermos uma avaliação deste período, o fenômeno da instabilidade jurisprudencial não era muito presente. Depois da Constituição de 1988 o direito tributário passou a ser analisado por dois tribunais superiores: o Supremo, toda vez que o direito tributário envolvia interpretação e aplicação da Constituição, e o STJ, toda vez que o direito tributário envolvia interpretação infraconstitucional. Surgiu o que estamos chamando de zona cinzenta no direito tributário: muitas questões, na aparência, são de direito infraconstitucional, mas na essência são de direito constitucional. |
Valor: Mas no caso do crédito-prêmio IPI, por exemplo, ocorreu uma divergência entre o STJ e o próprio STJ. Isto também acontece... |
Delgado :Exatamente. Nós tínhamos 50 decisões unânimes anteriores à mudança de posição sobre o crédito-prêmio IPI. Segundo um levantamento que fiz, 27 ministros se pronunciaram sobre o assunto no mesmo sentido, entre os que se aposentaram e foram substituídos. |
Valor: Então a jurisprudência é ameaçada por duas instabilidades: aquela resultante da divisão de tarefas entre o STJ e o Supremo e a resultante da mudança de posição dos próprios ministros? |
Delgado : E isso sem nenhuma mudança na legislação e nem movimentos sociais e econômicos que determinassem uma nova configuração interpretativa. Sem a ocorrência desses fatores modificativos, esta mudança jurisprudencial afeta o chamado princípio fundamental da segurança jurídica. |
Valor: Está havendo pouco respeito a esse princípio? |
Delgado : No meu entender, com o máximo respeito aos meus pares, está havendo uma tendência crescente à violação do princípio da segurança jurídica. Nós não podemos perseguir uma jurisprudência perfeita, até porque é algo impossível de se concretizar. Nós devemos sempre considerar que a jurisprudência é obra do homem, e o ser humano se submete a emoções, influências, transformações, defesa dos seus ideais... Então inevitavelmente há impurezas nas decisões jurisprudenciais. |
Valor: Existe uma ferramenta que surgiu para lidar com essa instabilidade que é a "modulação" dos efeitos das decisões. O que o sr. acha deste dispositivo? |
Delgado : O Supremo criou um novo instrumento jurídico, de modulação, para dar segurança jurídica ao determinar que suas decisões só possam ser aplicadas a partir de determinado tempo. No que ser refere às ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) e ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), já há previsão legal, na lei específica. Mas o Supremo está indo além disso, em nível constitucional. Eu ainda não estou convencido. Já me manifestei em sentido contrário, mas abrindo janela para uma modificação de entendimento. |
Valor: Então o sr. pode mudar de opinião? |
Delgado : Posso mudar de opinião. Estou deixando a porta aberta, embora no caso do crédito-prêmio IPI eu tenha votado em sentido contrário. |
Valor: Há dois princípios em questão: um que propõe a modulação e outro que propõe a estabilidade completa da jurisprudência. Como escolher entre os dois? |
Delgado : É preciso aplicar o princípio da ponderação, se é em homenagem à segurança jurídica, respeitando as situações tributárias já constituídas, respeitando os planejamentos tributários já feitos pelas empresas. As empresas entraram na competição internacional, venderam, e depois são surpreendidas por uma mudança jurisprudencial com efeito retroativo. Há empresas que estão sendo chamadas a devolver R$ 400 milhões, R$ 300 milhões... |
Valor: O sr. não acha que neste caso o Poder Judiciário está provocando um dano à sociedade, que seria indenizável? |
Delgado : Se eu responder afirmativamente à sua pergunta, estou me comprometendo com a tese futura da chamada responsabilidade civil. Eu me recuso a responder, não obstante digo que tenho muita simpatia pelo tema. A tese é provocante e merece uma análise muito acentuada. Será que as empresas que tiveram prejuízos em face desta mudança jurisprudencial em decorrência do exercício de uma atividade do poder jurisdicional podem promover ações de responsabilidade civil contra o Estado? Deixo a resposta para os outros... |
Valor: Foi proposto um projeto no Congresso Nacional dando competência constitucional ao STJ, mas a idéia foi abandonada. O que o sr. acha da proposta? |
Delgado : Entendo que era prudente, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, que o recurso especial apreciasse matéria infraconstitucional e constitucional, e que só subissem hoje para o Supremo os temas de repercussão geral. Com a criação da repercussão geral, é o momento de repensar o assunto. Eu sei que isto poderia resultar em uma carga de trabalho maior para o STJ, mas isso não é argumento. É questão de gestão administrativa. |
Valor: O sr. acha que a divisão de competências entre STJ e Supremo é um modelo que deu errado? |
Delgado : Na minha opinião não tem sido de utilidade, não somente no que se refere à economia processual como também à celeridade. Ninguém fez os cálculos de quanto as empresas e os cidadãos gastam em tempo, papel e custas pela interposição dos dois recursos, ao STJ e ao Supremo. É um verdadeiro carnaval de burocratização: um modelo complicado, muito bem pensado - mas não se pensou na questão da gestão de processos. (FT) |
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